Mentiras inconvenientes

Uma pesquisa realizada pelo instituto norte-americano Pew Research Center perguntou a cerca de mil estudiosos, pessoas envolvidas com tecnologia, pensadores estratégicos e outros especialistas se nos próximos dez anos emergirão métodos confiáveis para bloquear narrativas falsas e permitir que dados mais precisos prevaleçam no ecossistema global de informações, ou se a qualidade e a veracidade do conteúdo on-line se deteriorará devido à disseminação de ideias socialmente desestabilizadoras, às vezes até perigosas.

A resposta de 51% dos especialistas foi que o ambiente de informação não vai melhorar na próxima década. As duas principais razões citadas foram que atores manipuladores vão usar novas ferramentas digitais para tirar proveito da preferência inata dos seres humanos por conforto e conveniência, e que nossos cérebros não estão preparados para enfrentar o ritmo da mudança tecnológica. 

Os 49% que acreditam que as coisas vão melhorar em geral invertem esse raciocínio. Suas razões são que a tecnologia pode ajudar a resolver esses problemas – alguns preveem o surgimento de melhores métodos para criar e promover fontes de notícias confiáveis – e também afirmam que é da natureza humana se unir e resolver problemas, uma vez que as pessoas sempre se adaptaram à mudança, e que essa atual onda de desafios também será superada.

Problema complexo

Diante disso, quais são os caminhos e o que pode ser feito para evitar esse primeiro cenário, tão aterrador? As soluções, de acordo com o professor associado da Universidade Harvard e titular aposentado do Departamento de Ciência da Computação da UFMG Virgilio Almeida, vão passar por dois eixos: ciência e tecnologia, lei e alfabetização midiática.

Mas, antes de tudo, é preciso entender o que está acontecendo. O Conselho da Europa classificou as fake news em três categorias pertencentes a um quadro maior que foi chamado de desordem informacional, um conceito relevante por abranger diversas nuances da manipulação. Existe a desinformação (disinformation), ou seja, a notícia falsa deliberadamente criada para prejudicar alguém, um grupo ou instituição; a informação errada (misinformation), que apresenta erros, mas não é criada com a intenção de fazer mal; e a má informação (mal-information) que embora tenha bases reais, é editada e disseminada para causar danos.

Almeida explica que notícias falsas sempre existiram, o que muda nesse momento é a velocidade com que se espalham e sua capilaridade, ou seja, a quantidade e diversidade de pessoas que atingem. “Devido à hiperconectividade, estamos o tempo todo ligados às redes e às pessoas. Isso faz com que qualquer coisa se propague muito rapidamente, é praticamente instantâneo”, afirma.

As notícias falsas, especificamente, tendem a se espalhar ainda mais rápido e de modo mais abrangente. Estudos de Deb Roy, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), publicados na revista “Science”, comprovam tal afirmação. O grupo analisou histórias verdadeiras e falsas que circularam pelo Twitter desde 2006 até 2017 totalizando 126 mil sequências de tuítes espalhadas mais de 4,5 milhões de vezes por 3 milhões de pessoas, de temas diversos como política, negócios, entretenimento, ciência e desastres naturais. A probabilidade de notícias falsas serem retransmitidas é 70% maior do que as verdadeiras e a porcentagem aumenta quando os temas são políticos.

A equipe de Roy também concluiu que a mentira tem um estilo de redação específico, apresentando linguagem simples e direta e apelando para sentimentos básicos como medo e raiva. “A pesquisa também demonstra que as notícias falsas são articuladas para trazerem novidades, essa é uma das hipóteses de por que elas são mais passadas para a frente do que a verdade”, acrescenta Almeida.

Abordagem multidimensional

A questão da desordem informacional é um problema com o qual ainda teremos que lidar durante um tempo, observa o professor associado da Universidade Harvard e titular aposentado do Departamento de Ciência da Computação da UFMG Virgilio Almeida. “Não há solução a curto prazo, uma bala de prata que vai dar um tiro nesse mal e matá-lo. Nem vai ser uma lei a resolver, isso não foi encontrado em lugar nenhum. O processo é amplo, envolve a sociedade e pressupõe que se tenha mais cuidado ao repassar as notícias, algo que tem a ver com o que é chamado de alfabetização midiática”, diz.

O desenvolvimento de tecnologias que possam barrar a disseminação das notícias falsas também é um aspecto importante, assim como a proteção de dados. Há indícios de que nas recentes eleições da França e da Alemanha a desordem informacional foi quantitativamente menor e menos eficaz porque esses países têm regras que dificultam a coleta de dados pessoais. Em maio, entrará em vigor, na União Europeia, a Regulação Geral de Proteção de Dados, conjunto de medidas restritivas nesse campo. No Brasil, há anos existe o debate de uma Lei Geral sobre Proteção de Dados Pessoais. Há projetos na Câmara e no Senado.

De novo, vale frisar que essas ações, isoladas, são insuficientes. “A Comissão Europeia apresentou, recentemente, uma proposta cujas linhas de atuação trazem uma abordagem multidimensional. Acredito que seja um bom exemplo para o Brasil discutir e adaptar às nossas características”, afirma.

Site de combate visa eleição

A proximidade das eleições de 2018 tem deixado muita gente preocupada, na medida em que o debate político pode ser influenciado pelas fake news. Tanto que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem trabalhado em parceria com empresas de tecnologia e pesquisadores do tema e deve divulgar em breve diretrizes sobre o assunto, de modo a evitar a influência de conteúdos mentirosos no debate eleitoral.

Foi pensando nisso que, na última semana, foi lançado pela UFMG o projeto Eleições Sem Fake. Coordenador da iniciativa, o professor do Departamento de Ciência da Computação da universidade Fabrício Benevenuto explica que o projeto nasceu de um esforço para evitar que o que aconteceu nas eleições norte-americanas se repita por aqui. “Em vez de estudar o fenômeno após ele acontecer, apresentar um artigo científico que resolveria o problema depois que ele já aconteceu, decidimos colocar no ar ferramentas de prevenção baseadas na experiência dos Estados Unidos”, afirma.

O site contempla cinco sistemas que possibilitam a jornalistas, analistas, cientistas políticos ou a outros interessados acessar dados de audiência de políticos, audiência e perfis de jornais e monitorar comportamentos suspeitos no Twitter e Facebook. Outros dois sistemas devem ser lançados nos próximos meses. 

Uma das ferramentas parece ser crucial para que haja transparência no modo como os políticos farão suas campanhas online – o Monitor de Anúncios no Facebook. Como um dos traços mais marcantes das eleições dos EUA foi o uso abusivo de anúncios contendo notícias falsas sobre candidatos impulsionadas por grupos russos, a ferramenta visa monitorar a dinâmica do impulsionamento de campanhas no Brasil.

“O usuário instala um plugin em seu navegador que envia para o nosso servidor as propagandas vistas por ele”, explica Benevenuto. “Se acontece de um grupo fazer propaganda com fake news, nós conseguiremos identificar. Dá pra saber também se uma pessoa física fizer muita propaganda para algum candidato, o que pode ser indício de caixa dois, não pode ser feito desse jeito. A própria existência da ferramenta pode ser um inibidor de comportamentos maliciosos, por isso é importante o maior número de pessoas instalar os plugins”.

 

Acesso por PERFIL

Pular para o conteúdo