O professor do Departamento de Ciência da Computação da UFMG, Virgilio Almeida, e o professor da EBAPE/FGV, Francisco Gaetani, escreveram, na última segunda-feira, 16, um artigo para o Jornal Valor Econômico. Leia abaixo o artigo na íntegra.
Devagar com o andor e com a automação
Francisco Gaetani 1 e Virgílio Almeida2
Os sinais emitidos pelo novo governo são claros: a recuperação e modernização da indústria brasileira, com ênfase na transformação digital do setor serão prioridade. Países desenvolvidos compreenderam a necessidade de se focar nas novas tecnologias como forças motrizes do desenvolvimento. A premissa é a de que o motor impulsionador da reestruturação produtiva é a transformação digital, combinada com a descarbonização da economia.
O pilar fundamental da transformação digital é o conjunto de tecnologias avançadas, que incluem inteligência artificial, robôs, big data, realidade aumentada, internet das coisas e redes, que são os vetores que interligam praticamente tudo: sociedade, empresas e governos. Os potenciais benefícios das tecnologias digitais são múltiplos. Elas podem trazer inovação, eficiência, competitividade e redução de custos para a sociedade e a economia. Podem também tornar os serviços públicos mais transparentes, disponíveis e eficientes. Os processos de transformação digital em vários países como Dinamarca, Holanda, Canadá e Coréia do Sul tem obtido sucesso com claros resultados para a sociedade e para economia.
Observa-se atualmente um fenômeno que tem chamado a atenção de vários economistas notáveis, como Paul Romer e Joseph Stiglitz, ambos ganhadores do Prêmio Nobel. Trata-se de um fenômeno decorrente da nova onda de tecnologias de inteligência artificial, que amplia radicalmente as possibilidades de automação e uso de robôs na substituição de trabalhadores humanos, executando não apenas tarefas rotineiras, mas também executando atividades profissionais mais complexas. Esse fenômeno tem sido descrito como “automação excessiva’’. Uma consequência preocupante dessa tendência de automação é a destruição de empregos médios e bons para os trabalhadores com ensino médio apenas, sem formação mais avançada. É bom
acentuar que as possibilidades da inteligência artificial combinada com a robotização não se restringem ao chão de fábrica e alcançarão também o setor de serviços e profissionais liberais.
É justamente esse lado sombrio da automação que acende uma luz vermelha importante para os governos no mundo inteiro. A automação excessiva pode ampliar a exclusão social, indo frontalmente contra uma das principais prioridades globais que é a redução das desigualdades sociais e econômicas. Esse é o nó da questão que requer uma discussão ampla com a sociedade. Todos os países emergentes debatem como conciliar objetivos estratégicos potencialmente conflitantes, como modernização da indústria, automação e redução da desigualdade. Por isso a referência ao ditado popular: “Devagar com o andor, que o santo é de barro”, que sugere cautela ao tratar das iniciativas de se acelerar os processos de automação.
A perda de postos de trabalho que poderiam conviver com a digitalização de forma combinada, agregando valor ao processo no seu conjunto, tem sido subestimada. Organizações tem se tornado plataformas digitais, operadas por algoritmos impessoais, que levam à eliminação de empregos, frequentemente desnecessária, contraproducente e antieconômica, em função da desatenção para com as implicações da supressão do fator humano.
Em um artigo recente sobre os impactos das mudanças tecnológicas sobre o mercado de trabalho, David Autor, professor de economia do MIT, explora a incerteza que temos sobre nosso futuro tecnológico. A velocidade das inovações tecnológicas combinada com o avanço das tecnologias de inteligência artificial em todas as áreas ampliou o rol de possibilidades tecnológicas em direção a limites que ainda são pouco visíveis no momento. Até onde deve chegar a automação? Por isso o artigo coloca a advertência de cautela no contexto da inteligência artificial (IA): “Dada a aplicabilidade potencial da IA para um vasto conjunto de propósitos, nós coletivamente (ou seja, indivíduos, organizações e governos) não devemos simplesmente perguntar o que a IA realizará, mas o que queremos que ela realize. Como podemos usar a IA de forma mais produtiva para complementar os trabalhadores, aumentar a produtividade e, de forma mais
ampla, enfrentar os problemas mais urgentes da humanidade’’?
Caberá ao estado e às lideranças empresariais articular, juntamente com a participação dos trabalhadores, a transição digital criando um contexto para uma política industrial que apoie a inovação, estimule a cooperação público-privada, fortaleça a ciência e a tecnologia e garanta condições para os trabalhadores se adaptarem aos novos paradigmas tecnológicos. Há pelo menos dois caminhos onde políticas públicas podem ser usadas para direcionar os rumos da automação. No primeiro, a IA, juntamente com a robotização, pode ampliar a automação, através da substituição do elemento humano, tomando lugar de trabalhadores, em busca de eficiência e redução de custo no curto prazo. Mas essa opção pode acabar levando a impactos sociais negativos. Um segundo
rumo é usar a inteligência artificial para ampliar a capacidade dos trabalhadores, combinando a as habilidades humanas com a capacidade inovadora da IA.
Políticas públicas podem ser usadas para direcionar investimentos e incentivos para indústrias que buscam usar as tecnologias de inteligência artificial para “empoderar’’ o elemento humano, diminuindo o impacto social da automação. Políticas publicas podem também orientar o financiamento de pesquisas e desenvolvimentos de tecnologias que valorizam a relação trabalhador e inteligência artificial, sem descartar o elemento humano. A tecnologia pode ser parceira do trabalho humano de múltiplas formas. Tarefas puramente repetitivas ou que trazem riscos para os trabalhadores podem ser substituídas por algoritmos empoderados pela IA abrindo espaço para uma valorização da capacidade das pessoas agregarem valor ao trabalho. Esta é a premissa em torno do qual governos dos países desenvolvidos estão estruturando suas políticas de transformação digital.
1 Francisco Gaetani é professor da EBAPE/FGV.
2 Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, professor emérito da UFMG e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação.